As moscas, por Baptista Bastos, in Correio da Manhã:
“Creio que a televisão era a SIC, sempre pressurosa e solícita em noticiar episódios que tenham como protagonistas ministros, empresários e afins. O sr. Manuel Agonia, pelo que vi, é um senhor considerável, robusto e, até, um pouco bojudo, que me fez lembrar os desenhos de George Grosz. Faltava-lhe o charuto, no que lhe sobrava de sobranceria. Em posição subalterna, porém muito satisfeito e feliz, caminhavam Pedro Passos Coelho e uma comitiva sorridente. O sr. Agonia, pelo que soube a seguir, é o presidente do conselho de administração do Hospital Senhor do Bonfim, em Vila do Conde, recém-inaugurado. Tudo isto decorre numa nítida perfeição, inclusive os sorrisos, as palmas e os discursos de circunstância. Foi quando a festa se toldou, pois o sr. Agonia, presidente, disse: "É preciso não esquecer que a saúde é um negócio." Caímos na realidade, porque a frase, só na aparência inócua, comporta, no seu bojo, uma doutrina, um projecto e uma alteração social que não devem ser negligenciados. Se queres ter saúde, paga-a. Se não tiveres dinheiro, morre para aí, despejado pela miséria. Como as ideias de um homem não lhe pertencem, em exclusividade, e fazem sempre parte de um grupo e de um sistema de valores, a declaração do sr. Agonia não é despicienda. Insere-se numa estrutura de pensamento que cavalga na Europa, muitas vezes com a cumplicidade ou a complacência daqueles que a deviam combater. "Cada vez somos menos", dizia-me, há tempos, o meu amigo Manuel Alegre, perante a avalanche de cobardias que por aí se precipita. A Esquerda, aparentemente sem resposta, parece entender esta torrente ideológica como um transtorno momentâneo. Mas o movimento de alteração da ordem social nascida no fim da guerra não é superficial: incorpora-se nas novas projecções do capitalismo, que pretende abalar os padrões de solidariedade e as relações humanas, constitutivos de uma Europa em desaparecimento acelerado. "A saúde é um negócio", arrepia ouvir. Há uns dias, Passos Coelho afirmou, a uma plateia de jovens correligionários, que "os donos do País estão a desaparecer". O homem cada vez sabe menos do que diz. As moscas são as mesmas, porém disfarçadas de borboletas.”
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