sábado, 1 de dezembro de 2012

A Arte de Furtar (13)

“Olhem para mim todos os Ministros del-rei que ontem andavam a pé e hoje a cavalo. Estejam atentos a duas perguntas que lhes faço e respondam-me a elas se souberem. E se não souberem, eu responderei por eles. Se os ofícios de vossas mercês dão de si até poderem andar num macho ou numa vaca, quando muito, e suas mulheres em numa cadeira, como andam vossas mercês em liteira, e elas em coche? Se a sua mesa se servia muito bem com pratos, saleiro e jarro de louça pintada de Lisboa, como se serve agora com baixelas de prata, salvas de bastiões, confeiteiras de relevo? Não me dirão de onde lhe vieram tantas colgaduras de damasco e tela, tantos bofetes guarnecidos, escritórios marchetados, com pontas de abada em cima? Deram de fartos em fome canina ? Já que lhes não dá do que dirá a gente, não me dirão onde acharam estes tesouros sem irem à Índia, ou que arte tiveram para medrarem tanto em tão pouco tempo, para que os desculpemos ao menos com a vizinhança? Já o rei, sem que mo digam: houveram-se como a raposa no galinheiro em que entraram, cevaram-se não só no necessáario senão também no supérfluo. Não se contentam com se verem fartos e cheios, como esponjas, querem engordar com acepipes. E por isso lançam o pé além da mão e estendem a mão até o céu e as unhas até o inferno e metem tudo a saco, quando o ensacam, e são como o fogo, que a nada diz basta.”

A Arte de Furtar, Tomé Pinheiro Da Veiga/Padre António Vieira, p334-336  – Oficina de Martinho Schagen, Amsterdão 1744

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