Vários autores, Climática. Trad. O’Lima.
Armazém de triagem da Fundació i Treball, localizada nos arredores de Sabadell (Catalunha), uma das maiores instalações de triagem do sul da Europa. Foto: Sara Aminiyán.
Num armazém nos arredores de Sabadell, dezenas de trabalhadores da Fundação Formação e Trabalho esforçam-se para classificar um fluxo incessante de roupas usadas: camisas de algodão, vestidos com lantejoulas, camisolas de poliéster, calças de ganga infantis. Cada peça representa, em teoria, um pequeno gesto solidário e sustentável: uma doação para «fechar o ciclo» do pronto a vestir.
O ritmo é frenético, os armazéns estão cheios e a maioria dessas peças, diz o fundador e até recentemente diretor da cooperativa social da Cáritas especializada em reciclagem têxtil Moda Re, Albert Alberich, «acabará em pacotes que serão enviados para o estrangeiro. Os volumes são enormes, a Europa simplesmente não tem capacidade de classificação para processá-los», acrescenta. De facto, a quantidade de têxteis usados exportados de países da UE para fora do bloco quase triplicou nas últimas duas décadas, atingindo 1,26 milhões de toneladas em 2024, de acordo com os últimos dados oficiais.
A Diretiva-Quadro Europeia sobre Resíduos, que entrou em vigor em 2025, obriga os Estados-Membros a estabelecer sistemas de recolha seletiva de têxteis. É um dos pilares do Pacto Ecológico Europeu e da Estratégia para Têxteis Sustentáveis e Circulares, que visa reduzir a pegada ambiental do setor. Na prática, porém, o sistema está a mostrar as suas falhas. O que deveria ser circularidade tornou-se, muitas vezes, um desvio controverso: um fluxo cada vez mais opaco de toneladas de roupa que saem da Europa para serem classificadas, revendidas ou simplesmente armazenadas a milhares de quilómetros de distância e em condições de trabalho que, frequentemente, violam as normas da legislação laboral internacional.
Esta investigação colaborativa de nove meses, baseada em dados comerciais e documentos alfandegários exclusivos, uma análise original da pegada de carbono e geolocalização através de SmartTags da Samsung, revela como a visão europeia da circularidade têxtil se tornou parcialmente um novo fardo climático. Um fluxo alimenta um comércio opaco e intensivo em carbono que se estende por milhares de quilómetros e que, em alguns casos, até regressa à Europa.
Um sistema à beira do colapso
A sobreprodução do pronto a vestir, impulsionada por impérios como Inditex, H&M e, mais recentemente, os gigantes chineses Shein ou Temu, inundou o mercado com roupas baratas, de baixa qualidade e vida útil curta. Essas peças, feitas em grande parte de fibras sintéticas de pior qualidade, estragam-se mais facilmente e são difíceis de reutilizar ou reciclar, como explica Urška Trunk, responsável sénior de campanhas na organização sem fins lucrativos Changing Markets Foundation.
A maior parte dessas peças de roupa ainda hoje não é recolhida de forma seletiva: estudos recentes estimam que apenas entre 10% e 12% dos resíduos têxteis pós-consumo gerados em Espanha são recolhidos separadamente para reutilização ou reciclagem, o que nos coloca entre 2 e 4 pontos abaixo da média europeia.
Mesmo assim, o aumento das doações e dos resíduos têxteis ultrapassou a capacidade dos centros sociais europeus e, em consonância com a entrada maciça da China também no mercado de segunda mão, fez com que o seu valor caísse mais de metade desde 2022, segundo Zoltan Gundisch, da Aretex Roménia. Com estas margens, «o sistema já não é viável sem apoio público», denuncia Gundish.
Da Europa ao Dubai e ao Paquistão... e de volta?
Entre as exportações, há um punhado de destinos que se destacam dos demais: as zonas francas dos Emirados Árabes Unidos no Dubai – Jebel Ali, Sharjah ou Hamriyah – e as zonas de exportação do Paquistão, como a EPZ de Karachi. Essas zonas económicas especiais facilitam as exportações e o comércio, mas também dificultam o cumprimento das normas laborais e ambientais.
Assim, de acordo com um relatório da Oxford Economics de 2023, os Emirados Árabes Unidos são o principal destino extracomunitário de roupas usadas da UE e do Reino Unido, com mais de 231,8 mil toneladas no valor de 147 milhões de dólares, seguidos pelo Paquistão com 208,6 mil toneladas.
Até ambos os países, entre as milhares de toneladas enviadas este ano para serem classificadas – em condições opacas e muitas vezes por trabalhadores precários –, chegaram 6 das 28 SmartTags colocadas por esta equipa. Quatro acabaram na Zona de Processamento de Exportações de Karachi (KEPZ), destacando o papel crescente do Paquistão no comércio de têxteis usados europeus, e duas nas zonas francas dos Emirados – uma delas, depositada no ponto de recolha da loja H&M de Barcelona.
O exemplo da Espanha é revelador: o volume de roupas usadas enviadas para o estrangeiro quadruplicou entre 2015 e 2023, e mais de 27% do que a Espanha declarou exportar durante esse período foi para os Emirados, seguidos pelo Paquistão, com pouco mais de 12%, de acordo com dados declarados pela Espanha ao gabinete de estatísticas comerciais das Nações Unidas (UN Comtrade).
A ModaRe, de facto, admite exportações de roupa sem triagem prévia, mas nega importar peças em segunda mão provenientes dos Emirados Árabes Unidos ou do Paquistão. Algumas das entidades da Aeress também reconhecem as exportações no Paquistão e defendem que há aspetos do funcionamento internacional deste mercado que estão fora do seu conhecimento. Perante as evidências apresentadas na reportagem, a Humana reconheceu que, em algumas ocasiões, realiza importações de países como os Emirados Árabes Unidos para abastecer as suas lojas.
Outros operadores importantes do setor, como a East West, recusaram-se a comentar. As empresas dos Emirados Árabes Unidos e do Paquistão, para onde foram enviadas as SmartTags, não responderam aos pedidos de comentários.
Um rasto invulgar que esconde uma pegada de carbono multiplicada
Grande parte destas peças não fica nesses países: são reexportadas, principalmente para mercados africanos como o Quénia, a Tanzânia ou Moçambique. Algumas dessas peças exportadas são até reexportadas para a Europa, completando um tipo de circularidade distorcida que multiplica as emissões de carbono em vez de as reduzir. Enquanto a Espanha envia volumes massivos de roupa para os Emirados, os dados comerciais revelam algo surpreendente sobre o que volta.
99% das exportações dos Emirados Árabes Unidos para Espanha são reexportações: as roupas chegam, são processadas e depois reenviadas sem transformação, geralmente através das zonas francas do Dubai.
Documentos da Guarda Nacional Ambiental da Roménia obtidos por esta equipa exemplificam o que pode estar a acontecer: em 2023, a Roménia interceptou 26 toneladas de roupa proveniente da Alemanha, destinada a uma empresa localizada na zona franca de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos. Apesar de ter sido declarada como roupa reutilizável e com certificados de limpeza, as inspeções revelaram peças sujas e danificadas, que deveriam ter sido classificadas como resíduos, e mesmo assim a exportação foi autorizada.
O comprador final era a filial eslovaca da Garson & Shaw, um gigante do setor de artigos usados. Dados posteriores indicam novos envios dos Emirados Árabes Unidos para a Europa: um percurso circular e opaco que levanta questões sobre por que uma empresa que se apresenta como sustentável desviaria mercadorias por várias jurisdições com pouca transparência.
Uma análise da consultoria Inédit, encomendada exclusivamente para esta investigação, quantifica o impacto ambiental deste modelo. Enviar a roupa para o Dubai para ser classificada e revendida em Espanha triplica as emissões de dióxido de carbono (CO₂) em relação ao que se faz localmente: 0,576 toneladas de CO₂ equivalente por tonelada de roupa contra 0,195 toneladas dentro do país. Se for feito por via aérea, o impacto é doze vezes superior. Embora a reutilização continue a ser menos poluente do que fabricar peças novas, esta logística internacional dilui parte dos benefícios climáticos.
Enfrentar o desafio para além da retórica verde
«Não é justo: estamos a pagar e a assumir um problema que não criámos. A responsabilidade é dos produtores», denuncia Maria Suau, da Fundació Deixalles (Maiorca).
A rede europeia reuso, da qual faz parte a Fundació Deixalles, há anos que alerta para esta tendência: falta de circularidade real, dependência das exportações, saturação dos mercados de segunda mão e ausência de financiamento público. A nível europeu, a nova Responsabilidade Alargada do Produtor (RAP) tinha de transferir os custos de gestão para os fabricantes. Mas a sua aplicação é lenta e desigual.
«É uma mudança necessária, mas tardia», adverte a eurodeputada socialista Helene Fritzon. «Entre a proibição de deitar roupa fora e a ausência de sistemas eficientes de reciclagem, existe um vazio que ameaça fazer colapsar o setor», salienta.
Em junho de 2025, a Espanha publicou uma versão preliminar do Real Decreto 1055/2022 sobre embalagens e resíduos de embalagens, mas a implementação total só ocorrerá em 2028. Esta regulamentação estabelece metas para 2035 de 10% de redução de resíduos em relação a 2027, 70% de recolha seletiva e reciclagem dos resíduos gerados e preparação para reutilização de 35% dos resíduos recolhidos seletivamente. O último ponto é aquele que os gestores da economia social, como Albert Alberich (ModaRe), consideram o mais crítico e difícil de alcançar: “O grande problema não é a recolha, mas sim a triagem. E sabemos isso em primeira mão. As instalações de triagem não surgem de um dia para o outro. Não é loucura pensar que poderemos recolher 300 000 toneladas, mas é uma loucura absoluta pensar que poderemos triar 200 000”.
Em França, a nova lei sobre Responsabilidade Alargada prevê penalizar a fast fashion com taxas mais elevadas por peça produzida, introduzindo a chamada ecomodulação que os produtores sustentáveis há muito reclamam. «Não pode ser tão barato colocar uma peça de fast fashion no mercado», afirma Suau. «Este será um dos grandes desafios para a Europa.»
O fecho do círculo?
A Europa prometeu fechar o ciclo da moda e, segundo especialistas, ativistas e eurodeputados consultados, já dispõe das ferramentas para o fazer. «Externalizar o problema não é a solução», acrescenta o eurodeputado verde dinamarquês Rasmus Nordqvist. «É essencial assumir total responsabilidade pelo que acontece com um produto desde o momento em que é criado».
O esquema de Responsabilidade Alargada do Produtor (RAP) poderá obrigar as marcas de moda a investir na infraestrutura europeia de triagem, embora ainda reste saber como será implementado e se será suficiente para resolver o problema.
O que está a esgotar-se, alertam muitos, é o tempo para o fazer de forma real: com menos produção, mais reparação e uma gestão transparente. Até lá, a circularidade continuará a viajar de barco e de avião para o Dubai, deixando para trás um rasto de CO₂ e promessas vazias.
Sem comentários:
Enviar um comentário