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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

LEITURAS MARGINAIS

ATAQUE EM BONDI BEACH: COMO OS ALIADOS OCIDENTAIS ESTÃO A PERMITIR A LÓGICA GROTESCA DE NETANYAHU
Jonathan Cook, MEE. Trad. O’Lima.


Homenagens deixadas em memória das vítimas do ataque em Bondi Beach, em Sydney, em 15 de dezembro de 2025 (Saeed Khan/AFP)

O primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu tirou a conclusão errada do ataque terrorista de domingo em Bondi Beach — e os líderes e media ocidentais estão mais uma vez a acreditar na sua lógica distorcida.

Como se esperava, Netanyahu procurou explorar o ataque — no qual mais de uma dúzia de pessoas foram mortas por dois atiradores durante uma celebração do Hanukkah em Sydney — para justificar implicitamente o massacre e a mutilação de dezenas de milhares de crianças em Gaza pelos israelitas nos últimos dois anos.

Netanyahu disse que escrevera ao primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, alguns meses antes, culpando-o não apenas por supostamente não combater o antissemitismo no seu país, mas também por alimentá-lo ao reconhecer a soberania palestina. Citando a carta, ele disse: «O seu apelo à criação de um Estado palestiniano atiça o fogo do antissemitismo. Recompensa os terroristas do Hamas. Encoraja aqueles que ameaçam os judeus australianos e incentiva o ódio aos judeus que agora assombra as suas ruas.»

Por outras palavras, Netanyahu responsabiliza qualquer líder que faça uma concessão, por mais retórica que seja, ao povo palestino pela violência dirigida contra os judeus. E fá-lo mesmo que a concessão esteja em conformidade com o direito internacional e com uma recente decisão do Tribunal Internacional de Justiça que exige que Israel ponha imediatamente fim à sua ocupação ilegal dos territórios palestinos, incluindo Gaza.

Isso coloca muitos outros líderes mundiais na mira de Netanyahu, incluindo Keir Starmer, da Grã-Bretanha, Emmanuel Macron, da França, e Mark Carney, do Canadá, além dos líderes da Irlanda, Espanha, Portugal, Bélgica e Noruega. Todos reconheceram recentemente a soberania palestiniana.

Pode-se imaginar que eles estariam dispostos a rejeitar a sugestão de Netanyahu de que há uma ligação entre os assassinatos na Austrália e o reconhecimento dos direitos palestinianos. Afinal, ele está implicitamente afirmando que o menor esforço para aliviar o sofrimento palestiniano leva inexoravelmente a ataques contra judeus. Presumivelmente, então, o Ocidente deveria deixar os palestinianos sofrerem indefinidamente.

Como se fossem prisioneiros da síndrome de Estocolmo, os líderes ocidentais parecem dispostos a concordar com o raciocínio distorcido de Netanyahu. Mesmo Albanese, diretamente culpado por Netanyahu pelos assassinatos, rejeitou abertamente a acusação, afirmando apenas que «a grande maioria do mundo reconhece a solução de dois Estados como o caminho a seguir no Médio Oriente».

Suspeito de crimes de guerra

A primeira coisa a notar é o facto extraordinário de que os argumentos de Netanyahu sobre os assassinatos em Bondi Beach estão a merecer uma cobertura muito favorável dos media ocidentais. Refira-se que ele não é uma parte desinteressada, embora isso não fique claro na cobertura.

Logo após o ataque, duas importantes publicações americanas, o New York Times e a Atlantic, apressaram-se a publicar artigos ecoando Netanyahu, sugerindo uma ligação entre a causa da justiça palestiniana e o terrorismo antijudaico. A BBC, o The Guardian e outros têm dado espaço a lobistas pró-Israel que também procuram associar os protestos contra o genocídio dos últimos dois anos ao ataque em Sydney.

Grupos internacionais de direitos humanos, especialistas jurídicos da ONU e estudiosos do genocídio concordam que Netanyahu supervisionou um genocídio de dois anos em Gaza. Ele próprio é procurado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade, em parte por usar a fome como arma de guerra contra a população do enclave.

Mas este suspeito de crimes de guerra – um fugitivo da justiça – está a receber uma plataforma em todos os media ocidentais para distorcer a realidade e culpar outros por uma suposta «crise de antissemitismo» pela qual ele é o principal responsável. O criminoso não está apenas a ser autorizado a escapar impune dos seus crimes. Agora é ele quem está a ser autorizado a dizer-nos quem deve ser julgado.

Reparem também na resposta dos líderes ocidentais. Vejam como são rápidos a condenar um ataque terrorista antissemita e como o fazem em voz alta — em comparação com a relutância que têm demonstrado há dois anos em admitir que o massacre de dezenas de milhares de palestinianos e a fome de mais dois milhões sequer ocorreram. Mais uma vez, isto parece ser um racismo ocidental profundamente enraizado contra palestinianos, árabes e muçulmanos, mais do que um problema de antissemitismo no Ocidente, como afirma Netanyahu.

Recusar-se a aceitar a lógica falha de Netanyahu e procurar as verdadeiras causas dessa violência não justifica, de forma alguma, o ataque em Bondi Beach. Diagnosticar erroneamente essas causas, como Netanyahu prefere, significa que as feridas que levaram à violência continuarão a infeccionar. Há todos os motivos, como veremos, para acreditar que isso é exatamente o que o primeiro-ministro israelita deseja.

Lógica distorcida

A lógica sem sentido de Netanyahu — de que respeitar o direito internacional em relação à Palestina leva à violência contra os judeus — só faz sentido porque, durante anos, os líderes ocidentais conspiraram numa narrativa que confunde abertamente as críticas a Israel com o ódio aos judeus.

O rabino-chefe da Grã-Bretanha, Ephraim Mirvis, foi rápido em ecoar esse tema. Ele disse à BBC que o ataque em Bondi Beach foi uma consequência da «demonização» de Israel. Ele pediu mais repressão legal e policial aos protestos contra Israel.

Este é o mesmo rabino-chefe que concluiu no início de 2024, quando o número de palestinianos mortos por Israel em Gaza já chegava a 23.000: «O que Israel está a fazer é a coisa mais notável que um país decente e responsável pode fazer pelos seus cidadãos». Ele elogiou as tropas israelitas em Gaza como «os nossos heróicos soldados», aparentemente esquecendo-se de que é o rabino-chefe da Grã-Bretanha, e não de Israel. Assim, ele confundiu o povo judeu com Israel — algo que seria denunciado como antissemita se um crítico de Israel o fizesse.

Na verdade, sempre foi objetivo de Israel apresentar-se como representante dos interesses dos judeus em todo o mundo, incluindo aqueles que são cidadãos de outros Estados — e até mesmo o número significativo que se recusa a reconhecer a legitimidade da agenda supremacista étnica de Israel.

Os líderes israelitas conseguiram finalmente o que queriam nos últimos anos com a adoção generalizada de uma nova definição de antissemitismo, formulada por um grupo pró-Israel chamado Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). A definição muito criticada da IHRA oferece 11 exemplos de «antissemitismo», sete dos quais não se referem ao ódio aos judeus, mas à crítica a Israel.

O antissemitismo redefinido

Essa reimaginação radical do antissemitismo abriu as comportas, tal como Netanyahu e outros esperavam, para a alegação de que o antissemitismo era um problema crescente nas sociedades ocidentais e precisava de medidas agressivas para ser combatido. Isso significava que quanto mais cruelmente Netanyahu e Israel tratavam os palestinianos — incluindo cometer genocídio em Gaza —, mais os grupos de pressão pró-Israel podiam divulgar pesquisas que mostravam um aumento acentuado do «antissemitismo». É óbvio que esse «anti-semitismo», não estava necessariamente enraizado no preconceito contra os judeus. Era mais frequentemente uma expressão de raiva contra um Estado violento, altamente militarizado, fora de controlo e totalmente irresponsável, que oprime e mata palestinianos em nome dos judeus em todo o mundo.

Por exemplo, em 2024, no auge do genocídio de Gaza por Israel, a Liga Antidifamação, um proeminente grupo de pressão pró-Israel, realizou uma pesquisa que identificou 9.354 incidentes «antisemitas» nos EUA— o número mais alto desde que começou a registar esses dados, em 1979.


O ponto significativo estava escondido nas letras pequenas. Pela primeira vez, uma clara maioria desses incidentes «continha elementos relacionados com Israel ou o sionismo» — a ideologia da supremacia étnica judaica usada para justificar a longa opressão do povo palestiniano por parte de Israel. Por outras palavras, a maioria desses incidentes «antisemitas» provavelmente não teria sido considerada antisemita antes da adoção da definição da IHRA.

Da mesma forma, a BBC noticiou esta semana que a Community Security Trust do Reino Unido, outro grupo pró-Israel, registou níveis recorde de crimes de ódio contra judeus utilizando a definição da IHRA, observando que estes «começaram a aumentar imediatamente após o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023».

De facto, a Trust observou em 2024 que 52% dos 3.528 «incidentes antissemitas» que registou eram «retórica» que «fazia referência direta ou estava ligada a Israel, Gaza, o ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro de 2023 ou a guerra subsequente no Médio Oriente». O Trust observa que essas 1.844 explosões retóricas se comparam a apenas 246 em 2022.

Com o sentimento anti-Israel formulado como "anti-semitismo", era inevitável que o "anti-semitismo" aumentasse durante o genocídio de Israel. Pessoas morais opõem-se ao genocídio. Na verdade, teria sido profundamente chocante se o "anti-semitismo", assim definido, não tivesse aumentado.

A desvalorização do significado do antissemitismo provou o seu valor nos últimos dois anos. Ao confundir críticas a Israel com antissemitismo, Israel, os seus lobistas, os governos ocidentais e os media podem agora, em paralelo, confundir protestos inteiramente justificados contra os crimes de Israel com terror inteiramente injustificado contra judeus.

Não são permitidos protestos

Netanyahu tem-se empenhado em culpar as redes sociais pelo surgimento desse novo tipo de “anti-semitismo” – porque, pela primeira vez, elas permitiram que os palestinianos e seus aliados transmitissem ao vivo o racismo e a violência de Israel.

Não é de surpreender que a maior exposição da criminalidade israelita tenha alimentado mais sentimentos anti-Israel, especialmente entre os jovens ocidentais. Também alimentou um maior senso de urgência de que os governos ocidentais devem ser pressionados a acabar com a sua conivência ativa no genocídio. Este impulso saudável, ético e democrático é então denunciado como uma «crise de antissemitismo» — que precisa de ação urgente.

Mirvis esteve na vanguarda dos esforços para transformar o ataque à praia de Bondi nesta semana numa arma, apelando para que os protestos contra o genocídio — ou o que ele chamou de «globalização da intifada» — fossem reprimidos. Ele disse à BBC: «Qual é o significado de ‘globalizar a intifada’? Eu vou-lhe dizer o significado... é o que aconteceu ontem na praia de Bondi».

Na verdade, «intifada» é a palavra que os palestinianos usam há décadas para descrever a sua luta pela libertação do que o tribunal mais alto do mundo decidiu no ano passado ser a ocupação ilegal, a opressão violenta e o regime de apartheid de Israel sobre os palestinianos.

Os palestinianos querem «globalizar» a sua luta, replicando o tipo de solidariedade internacional que derrubou o regime do apartheid na África do Sul. Mas os esforços do Ocidente para promover um movimento de boicote e sanções contra Israel, ecoando o movimento contra o apartheid na África do Sul, têm sido difamados como ódio aos judeus. De facto, os líderes ocidentais têm tratado todas as formas de protesto — mesmo que não violentas — contra Israel e o seu genocídio como ilegítimas e como fonte de um novo «anti-semitismo». O movimento de solidariedade palestiniano tem sido retratado como racista e violento, independentemente do que faça.

A raiva silenciada

Não é preciso ser um génio para perceber que reprimir protestos não violentos corre o risco de provocar violência. Poderíamos considerar isso como o dilema dos palestiniaos: ao longo de décadas, Israel esmagou lutas em grande parte não violentas — como a Primeira Intifada na década de 1980 e a Grande Marcha do Retorno de 2018 —, incentivando assim uma opção para a violência de 7 de outubro de 2023.

Mais uma vez, explicar a violência não a justifica. Mas as explicações são necessárias. São o primeiro e mais importante passo para encontrar formas de mitigar as circunstâncias que alimentam a violência. Isso significa que todos nós temos o dever de tentar identificar as verdadeiras causas da violência, e não simplesmente fechar as nossas mentes ao ouvir pessoas como Netanyahu, cujo interesse é oferecer justificações egoístas destinadas a desculpar a sua própria criminalidade.

Quando as verdadeiras causas da violência forem compreendidas, será possível ter um debate adequado. Podem ser feitos esforços para abordar essas causas — precisamente o curso de ação que Netanyahu e os líderes ocidentais desejam evitar a todo o custo no que diz respeito à Palestina. Porquê? Porque a busca pelas raízes dessa violência leva-os diretamente à sua porta.

Milhões de pessoas sentem-se totalmente impotentes perante o genocídio mais documentado de todos os tempos. Milhões veem os seus governos a ajudar ativamente Israel enquanto este bombardeia civis, faz limpeza étnica em comunidades inteiras e mata crianças à fome.

Os líderes e os media ocidentais não querem que fiquemos indignados com nada disso. Eles querem que expressemos a nossa indignação exclusivamente pelas vítimas dos atiradores de Sydney, enquanto silenciamos a nossa raiva pelo assassinato de dezenas de milhares de inocentes em Gaza por Israel e seus parceiros ocidentais.

Mas não precisamos de escolher. Podemos ficar indignados com ambos.

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