A CHOCANTE FALTA DE CONHECIMENTO HISTÓRICO DE KAJA KALLAS
Eldar Mamedov, Responsible Statecraft. Trad. O’Lima.A chefe da política externa da UE, Kaja Kallas, tem demonstrado consistentemente uma abordagem redutora e simplista da geopolítica que revela uma grave falta de profundidade estratégica e conhecimento histórico para uma função tão crítica. O seu fracasso é sintomático de um declínio mais amplo da arte de governar na Europa.
Reagindo à recente cimeira da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) e ao desfile militar em Pequim dedicado à vitória sobre o fascismo na Segunda Guerra Mundial, com a presença de dezenas de líderes, incluindo o presidente russo Vladimir Putin, Kallas expressou que era uma «novidade» para ela que a China e a Rússia estivessem entre os vencedores que derrotaram o nazismo e o fascismo.
Não se trata de um deslize menor, mas sim de uma chocante falta de conhecimento histórico. A União Soviética (cujo principal Estado sucessor é a Rússia) sofreu mais de 20 milhões de baixas na Grande Guerra Patriótica, um sacrifício que, em aliança com os EUA e a Grã-Bretanha, destruiu a máquina de guerra nazi. A China, por sua vez, suportou um sofrimento imenso num conflito brutal com o Japão, que foi um teatro crucial, embora muitas vezes esquecido no Ocidente, da Segunda Guerra Mundial. A China estima o número de mortos em 20 milhões.
Não ter conhecimento disso é ignorar a arquitetura fundamental de toda a ordem pós-guerra.
Para agravar a situação, numa caricatura bizarra, ela caracterizou os chineses como «muito bons em tecnologia, mas não tão bons em ciências sociais, enquanto os russos são super bons em ciências sociais, mas maus em tecnologia». Certamente deve ser alarmante que a principal diplomata da UE tenha apresentado essa dicotomia juvenil como uma ótica legítima através da qual se pode ver dois dos desafios estratégicos mais complexos e sérios que o continente enfrenta.
As declarações de Kallas foram tão graves que provocaram uma repreensão invulgarmente direta e dura por parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, uma medida que sinaliza uma preocupante degradação da posição diplomática da UE.
Esta compreensão primitiva está agora a ser operacionalizada numa política externa perigosamente rígida. Sob a liderança do Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE) de Kallas e da Comissão Europeia de Ursula von der Leyen, a UE cortou sistematicamente todos os canais de comunicação com a Rússia. Em Bruxelas, não há diálogos diplomáticos nos bastidores, nem explorações por canais secretos, nem mesmo um envolvimento a nível de grupos de reflexão à porta fechada. A posição oficial é uma postura moral absolutista: não falamos com Putin, um criminoso de guerra.
Esta política não é apenas estrategicamente ingénua; é ridiculamente inconsistente. As mesmas instituições mantêm um envolvimento profundo e contínuo com Israel, cujo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, está a ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional por alegados crimes de guerra. A resposta vacilante da UE à guerra em Gaza revelou esta incoerência: além das posições de princípio assumidas pela Espanha, Irlanda e Eslovénia, o bloco não conseguiu impor quaisquer custos significativos a Israel.
A aplicação seletiva dos princípios morais pela UE mascara uma estratégia de total desligamento da Rússia. Ao recusar todo o contacto, a UE voluntariamente cega-se e ensurdece-se, cedendo toda a iniciativa e perdendo qualquer capacidade de investigar pontos fracos, explorar saídas ou mesmo avaliar com precisão a disposição do adversário. Isto não é arte de governar; é paralisia autoimposta.
A abdicação estratégica da UE contrasta fortemente com a complexa realidade da moderna diplomacia global. O que testemunhámos em Pequim não foi a formação de um tipo de bloco antiocidental liderado pela China, mas uma convergência de interesses entre potências não ocidentais em duas frentes principais: minimizar o impacto das sanções secundárias dos EUA e construir independência do sistema financeiro dominado pelo dólar. Para países como a China, a Índia e a Rússia, não se trata principalmente de se oporem ao Ocidente, mas sim de afirmar a sua soberania e criar autonomia estratégica. Estão a resistir à capacidade de Washington de ditar unilateralmente os termos económicos globais, uma preocupação que ressoa muito além de qualquer aliança individual.
Esta é uma estratégia de multivectorismo, não de oposição monolítica. Nações como a Turquia (membro da NATO, mas que coopera com a Rússia) e a Índia (que equilibra as suas relações com o Ocidente, a China e a Rússia) estão a jogar habilmente este jogo. Até a própria China o pratica, apoiando economicamente a Rússia e, simultaneamente, tentando fortalecer os laços com a Europa.
A Rússia, amplamente isolada do Ocidente devido à sua guerra na Ucrânia, é forçada a inclinar-se para o seu vetor oriental, como evidenciam os novos acordos energéticos com a China.
No entanto, trata-se de uma adaptação pragmática, não de uma união ideológica. O Kremlin provavelmente reativaria o eixo ocidental se lhe fossem oferecidos incentivos económicos e concessões políticas suficientes, tais como aceitar os principais objetivos de guerra de Moscovo na Ucrânia (ou seja, reconhecer de facto os seus ganhos territoriais e garantir a neutralidade da Ucrânia, ou seja, a não adesão à NATO) e levantar todas as sanções.
Atualmente, é politicamente insustentável para o Ocidente conceder tais concessões. Mesmo assim, Putin encontrou-se com Donald Trump no Alasca, o que demonstra a sua disposição de restaurar, pelo menos parcialmente, o vetor ocidental através do trabalho bilateral com Washington. Portanto, a sua visita a Pequim não foi mais «antiamericana» do que a sua visita ao Alasca foi «antichinesa».
Essa estratégia pragmática e multivetorial não se limita às potências não ocidentais. Na verdade, ela apresenta uma profunda contradição interna para a própria UE, onde os Estados-membros Hungria e Eslováquia são raros exemplos de tentativas dessa abordagem dentro do bloco. Os primeiros-ministros Viktor Orbán e Robert Fico têm defendido consistentemente — e praticado — uma política externa que busca manter canais abertos com Moscovo e Pequim, defendendo a diplomacia em vez do confronto perpétuo e enfatizando os graves custos económicos da dissociação para as economias europeias.
No entanto, em vez de se envolver com esta perspetiva estratégica, a narrativa dominante da UE simplesmente rejeita-os como simpatizantes de Putin. Esta recusa deixa o bloco com uma política externa que não é nem coerentemente orientada por valores nem pragmaticamente eficaz. Está presa num limbo moralizante, exemplificado por figuras como Kallas e von der Leyen.
É alarmante que, enquanto o resto do mundo se protege, a UE não só se recusa a fazê-lo, como aumenta ativamente a sua dependência estratégica de um único parceiro, cada vez mais desinteressado: os EUA. Os exemplos são abundantes: o acordo comercial unilateral; a humilhante súplica a Trump sobre a Ucrânia; as discussões distantes da realidade sobre a «coligação dos dispostos» que fornece «garantias de segurança» à Ucrânia, que a UE e o Reino Unido são totalmente incapazes de cumprir sem o poderio militar americano; o restabelecimento, apoiado pelos EUA, das sanções do Conselho de Segurança da ONU ao Irão, um ato que contraria diretamente os interesses económicos e de segurança europeus, aumentando a probabilidade de uma nova guerra entre Israel e o Irão e empurrando Teerão ainda mais para os braços da Rússia e da China.
Esta falta de autonomia estratégica é ainda mais condenável, uma vez que mesmo os EUA, apesar da sua retórica, estão a passar por uma reavaliação pragmática do seu posicionamento global.
Para que a Europa consiga navegar pelas águas traiçoeiras do século XXI, os seus líderes devem demonstrar que possuem algum conhecimento básico sobre as grandes potências com as quais têm de lidar, em vez da mentalidade caricatural propagada por Kallas e seus pares. A insuportável leveza da abordagem atual deixará a Europa não como protagonista na formação de uma ordem global emergente, mas sim como espectadora impotente, desorientada e cada vez mais irrelevante.
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