“Os autos de fé, com mortos e feridos de parte a parte, geram uma escalada dantesca: em pouco tempo, mais de cem sedes de partidos de esquerda, a esmagadora maioria do PCP, são assaltadas, incendiadas e destruídas. Automóveis, escritórios de advogados, consultórios e casas de militantes também entram na fornalha. Livrarias e cafés de figuras de esquerda são apedrejados. Os militares chegam tarde, quase sempre. Quando chegam. Tiros, matracas, bastões cruzam-se. PSP e GNR fazem vista grossa e orelhas moucas, deixando arder, deixando bater.
A extrema-direita beligerante organiza-se a partir de Madrid. Spínola é o líder espiritual e os financiamentos surgem, sobretudo, por conta dos bons préstimos de senhores do tempo da outra senhora. No território, atuam grupos organizados, munidos de um cocktail refinado de armas e bombas. Dizem-se patriotas e defendem uma única saída: «Reagir pela violência e preparar o País para a guerra», escreve Paradela de Abreu, operacional da cruzada. Galvão de Melo, deputado do CDS e antigo membro da Junta de Salvação Nacional, escolhe: ‘Entre uma guerra civil e um governo comunista de obediência ao estrangeiro, prefiro uma guerra civil’, afirma, disposto a chefiar ‘um levantamento popular’. Com a moca de Rio Maior na mão dirá: ‘É preciso empurrar os comunistas até ao mar… e deixar que eles se afoguem.’
A hierarquia da Igreja mobiliza-se em todos os distritos a Norte.
Após 48 anos em silêncio a abençoar a nacional união, decide ter voz: organiza ‘manifs’ de apoio aos bispos em nome da liberdade e da democracia, com o caso da ocupação da Rádio Renascença em fundo. Para o catolicismo ultramontano, comunismo é tudo. E tudo é PCP. Na contenda, não se distinguem tonalidades nem pinta.
Braga, onde a Primeira República morreu a parir uma ditadura, é o quartel-general da conspiração de batina. D. Francisco Maria da Silva, arcebispo, benze a causa. O cónego Eduardo Melo organiza o rebanho e abençoa as mãos que carregam as bombas, diz-se. Ele nem às paredes confessa. De missa em missa, de aldeia em aldeia, a mensagem passa: ‘Os comunistas vêm aí para levar as crianças, ocupar as terras, dar uma injeção atrás da orelha aos velhinhos.’”
Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu (2017) – Oficina do Livro 2022, pp 46-47.
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