terça-feira, 22 de março de 2022

Bico calado

Quando a BBC apresentava Putin como o melhor dos amigos de ocasião de Bush.

MAJOR-GENERAL RAUL CUNHA: "QUEM BRINCOU À ROLETA RUSSA COM PUTIN É UM DOS GRANDES CULPADOS. É NÃO CONHECER O ANIMAL". Em entrevista ao Setenta e Quatro, o militar na reserva volta a defender as posições que têm levado os seus críticos a acusá-lo de ser propagandista e de fazer o jogo de Vladimir Putin. O major-general nega as acusações feitas, e explica as suas posições. 

«(…) Na minha opinião, não são os russos que não querem que os civis saiam. Quem não quer que os civis saiam são os defensores da cidade, porque sabem que no momento em que ficarem sem os civis aquilo é... Não têm a mínima hipótese de sobreviver. E por isso, enquanto estiveram lá civis, têm a esperança que a coisa não seja assim tão grave. Isto é a realidade, mas não se pode dizer. Qual o interesse dos russos em matar os civis que estão em Mariupol, que até são a maioria russos? É isso que não é dito. Os civis são ou russos ou russófonos. E são esses que querem sair e que têm fugido de lá, e não lhes acontece nada. (…) A própria Victoria Nuland [subsecretária de Estado para Assuntos Políticos dos EUA] reconheceu que sim, senhor, existem esses laboratórios. Disse que eram laboratórios de pesquisa, mas, então, porque é que eram financiados pelo Departamento de Defesa norte-americano? Não soa assim um bocadinho estranho?  (…) Não estou a defender o capitulacionismo, estou a defender que não haja mais desgraças e, sobretudo, mais refugiados. As mulheres e as crianças é que estão a pagar a factura. Isto de haver sete milhões de pessoas que vão ficar sem as suas casas e andar pelo Deus dará pela Europa é inaceitável. Isto é inaceitável e por isso é que acho que quem brincou à roleta russa com Putin é um dos grandes culpados disto tudo.  E quem é que brincou?  Alguns líderes europeus e os Estados Unidos. Isto surpreendeu toda a gente, até a nós, analistas. Eu próprio me enganei, convenci-me que havia bom senso e que iam aceitar as linhas vermelhas de Putin. Oito anos de guerra no Donbass, 14 mil mortos, assinados os Acordos de Minsk com o testemunho do presidente da França, Holland, Merkel e Putin. Então? Cumpram os acordos que assinaram. "Agora não, os acordos assinados foram-no debaixo de pressão". O que aconteceu foi que quando Poroshenko [Petro, antecessor de Zelensky na presidência] voltou a Kiev os amigos do Sector Direito [milícia de extrema-direita] disseram-lhe que se cumpria aquilo levava um tiro na cabeça. Mas tem alguma dúvida de que foi isso que se passou? Eu não. Quem veio a seguir, o Zelensky, voltou com a mesma conversa e, portanto, apostou sempre que quem acabava por recuar era Putin. É não conhecer o animal, é brincar com coisas sérias, é não levar a sério uma pessoa que tem de ser levada a sério, que avisou. Putin avisou em 2007 sobre o que pensava, depois pediu, repetiu e pôs forças na fronteira, como quem diz: "Ou vocês fazem aquilo que ando há séculos a pedir ou ataco". Esqueceram-se que é um gajo do all in, se jogasse póquer era sempre all in sem problemas.  Porque é que a NATO se expandiu ignorando Putin?  [Suspiro] Estamos convencidos que ele metia a viola no saco. É uma irresponsabilidade. (…) A ideia da irresponsabilidade não faz muito sentido tendo em conta que não é de apenas uma pessoa. São líderes europeus, líderes da NATO, assessores. Ou seja, tem de haver interesses, não pode ser apenas irresponsabilidade não refletida.  Há sempre interesses, mas não sei qual o interesse. Por exemplo, não podemos dizer, mas é um facto: os ucranianos escandinavos têm a mania que são a raça superior no local e, para eles, os russos que vão para a Rússia [antes da invasão], mas deixem o território para a gente. Vimos que até os portugueses tiveram dificuldade em sair - primeiro vão os loiros, tu vais para o fim da fila. Não tem medo que as suas palavras sejam mal-interpretadas ou descontextualizadas?  Pois, porque o problema é serem descontextualizadas, mas as verdades deviam ser ditas mais vezes, acho eu. Não é a generalidade - o povo é o povo, o trabalhador honesto do melhor que conheci – mas há lá gente muito má na sociedade ucraniana, temos de ter essa noção. Há racistas, xenófobos, supremacistas, neonazis.  Os seus críticos vão pegar nesta entrevista e dizer que o major-general está a favor da narrativa da “desnazificação” de Putin. Desnazificação da sociedade é um bocado exagerado, mas que esta gente existe na sociedade ucraniana... Ao nível sobretudo das forças armadas e das forças de segurança estão infiltrados a todos os níveis, estão infiltrados ao nível do comando das forças armadas da Ucrânia, atenção. Um dos conselheiros do chefe de Estado-Maior General ucraniano foi o primeiro comandante do Batalhão Azov. As pessoas não querem ouvir estas coisas. Não é que a sociedade ucraniana seja nazi, mas há lá gente muito má, e isto é um facto. Agora, desnazificar? Esta gente tem de perder pelo menos o poder que tem. Não sou contra haver partidos de esquerda ou de direita, de extrema-esquerda ou de extrema-direita, desde que respeitem as regras do jogo. Mas ali não é isso que se passa. Zelensky, quando publicou esta última lei dos autóctones, alienou oito milhões de pessoas esquecendo-se que também há minorias importantes que também são tratadas abaixo de cão. Em todo o leste europeu todos os roma são maltratados, no Kosovo, até os albaneses [os maltratam], e a isso assisti. O que aconteceu aos estudantes africanos que estavam na Ucrânia? Sabia que ficaram vários dias sem os deixarem sair dos campus universitários? Até fizeram manifestações a dizer "Let us go home".  Disse várias vezes que as pessoas não querem ouvir e que as verdades têm de ser ditas. Acha que há uma certa “caça às bruxas” contra quem tenta ir contra a narrativa dominante? Não tenho dúvidas. Repare, na SIC exprimi a minha opinião de que Putin tinha ficado encurralado e nem consegui dizer mais nada. Como tal e à maneira dele, Putin deu o salto em frente: "Estou preso, só tenho uma maneira, é atacar". Mas nem me deixaram acabar. O Ricardo Costa, que estava ao meu lado, disse logo "nem pensar, aquilo é a ideia dele, é o discurso dele, o que ele quer é a antiga União Soviética". Putin afinal o que queria era alargar o império russo, voltar às suas fronteiras e atacar os países bálticas e a Polónia. Epá, não é, acho que não é. E tenho direito a ter a minha opinião, as pessoas devem poder pensar sobre qual a lógica disto. Porque é que Putin ia ter uma lógica destas de conquistar terreno para alargar? Não faz muito sentido. Atacar um país com 44 milhões habitantes, dos quais há logicamente 30 e tal milhões no mínimo que não o vêem com bons olhos, e mesmo que os derrote grande parte vai-se transformar em guerrilheiros, a nível internacional vai ficar completamente desgraçado. Acha que ia fazer isto? Então porque é que atacou?  Atacou porque ficou sem saída. Pôs ali as suas forças e disse "quero no mínimo isto e isto" e disseram-lhe que não. "Ai é? Então ataco". Para mim, a pedra de toque para ele atacar foi quando Zelensky disse que queria armas nucleares. Não foi bem assim que ele disse, mas foi quase, quando disse que ia pôr de lado o Memorando de Budapeste. Zelensky pensava que não ia haver problema, ele chegou até a condenar os norte-americanos por estarem a ser alarmistas. Convenceu-se também que não havia problema nenhum, que tinha ali forças bastantes e que aguentava perfeitamente com a Rússia. Mas quem é que lhe meteu isso na cabeça? Como é possível um presidente de um país aceitar entrar numa guerra sabendo que a vai perder? E mesmo agora não está convencido que a vai perder - umas vezes parece que sim, outras que não, já não se percebe. (…) O próprio Zelensky disse não acreditar nos relatórios dos Estados Unidos sobre uma possível invasão, mas também por causa dos danos económicos que a especulação estava a causar.  Todos nós desvalorizámos, porquê? Ele talvez tivesse garantias de que alguém o ajudaria, não sei.  Mas a NATO não pode entrar. Há vozes fortes a pedirem uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia apesar de o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, já ter posto essa opção fora da equação.  Já ouvi pessoas com responsabilidades, deputados a pedirem isso. As pessoas não percebem que se houver zona de exclusão aérea vamos para a guerra? Acabou. Ou pensam que Putin vai voltar atrás? Esta malta não se enxerga? Se aplicamos uma ZEA entramos em guerra, só se houver um milagre e nenhum avião for abatido, nem russo nem da Aliança. Basta haver um e acabou-se. Fiquei preocupado quando o MiG-21 romeno foi abatido, só que felizmente foi a defesa aérea ucraniana que o abateu. (…) Como viu a notícia do Expresso sobre os três generais?  Aquilo faz parte de uma campanha, obviamente. Antes disso já o Milhazes... É um triste, não sei porque razão ganhou ali uma ultra raiva à Rússia, quando a gente sabe que até foi para lá enviado pelo Partido Comunista estudar, esteve casado com uma russa. Não sei o que a Rússia lhe fez que o homem veio de lá virado do avesso. Tudo bem, está no seu direito, mas é uma pessoa rancorosa. Um comentador não pode ter estados de alma, tem de tentar ver e perceber as coisas e, sobretudo, cada vez que contrariam as ideias pondo tudo num lado só... (…) Esse artigo do Expresso referia que o sector militar não estava a ver os generais com bons olhos. Já recebeu reações. Por acaso as reações que tive foram todas positivas e de pessoas que respeito e que têm opiniões contrárias. Porque a nossa interpretação nem sempre é a mais válida, mas coincidentemente ou não aqueles que tentam analisar um pouco como eu são aqueles que estiveram na ex-Jugoslávia, no Afeganistão ou no Iraque. Foi onde percebemos que a verdade tem sempre duas caras, sempre.  Viu uma campanha mediática semelhante?  No Kosovo e fazer dos sérvios bandidos na Bósnia, quantas vezes. Na própria Croácia, logo no início da guerra, os craina [milícia croata] eram todos uns bandidos e os croatas todos uns anjinhos, mas quem estava no terreno sabia que não era bem assim. Se eu dizia - e aconteceu - "atenção que vocês também não são nenhuns anjinhos, têm aqui grandes bandidos", diziam-me "ah, você é pró-Sérvia". É impressionante. No Kosovo, tudo o que havia de mau eram os sérvios, tudo o que havia de bons eram os albaneses.  Acha que esse debate de polarização do bom e do mau domina? É como nos habituámos a ver os filmes de Hollywood, de que as coisas são preto/branco e bom/mau. Há uns dias, num debate, disse que não percebia: então a NATO, que bombardeou a Sérvia, agora acha mal que a Rússia bombardeie a Ucrânia. No debate disseram que a NATO tinha que bombardear a Sérvia por o Milosevic ser um facínora. E eu disse ao outro comentador: o senhor está a raciocinar como Putin, há que bombardear a Ucrânia porque o Zelensky é um palhaço e há fascistas no governo. Bombardeia-se um país só porque não se gosta do governo desse país? Isto é o que um académico, um professor, pensa: fez-se bem em bombardear o Milosevic porque ele era muito mau. Mas o Milosevic foi responsável por massacres. Quais massacres? Isso foi a resposta que o académico disse. Srebrenica? Por exemplo. Quem foi massacrado em Srebrenica? Os muçulmanos. E os sérvios? Metade dos corpos encontrados - são as tais histórias mal contadas - em valas comuns eram de sérvios, porque o anterior comandante das forças muçulmanas em Srebrenica chacinou todas as aldeias sérvias que havia à volta da cidade. E os sérvios retaliaram?  Claro. E mais: aqueles que ficaram e que se entregaram ao exército safaram-se. Quais foram os que morreram, limpos a pouco e pouco? Aqueles que tentaram fugir, a maioria, praticamente duas divisões, 20 mil homens. Isto é assim. Havia ali contas antigas a ajustar. E quem teve interesse em desmembrar a Jugoslávia? Para mim é mais que óbvio. Quem? A Alemanha.  Porquê? Porque era um rival. A Jugoslávia era uma potência, caramba. Ainda sou do tempo em que a Jugoslávia era o nosso inimigo, porque o nosso exército reforçava a NATO no Norte de Itália face ao exército jugoslavo. Estudei muito a Jugoslávia e era uma potência em termos militares, mas dividida é uma maravilha. E os Estados Unidos? A Alemanha dentro da NATO não tinha assim tanta força. A Alemanha tinha muito interesse, deu o toque inicial fundamental: reconhecer a independência da Eslovénia e da Croácia. Os Estados Unidos, que no início até tinham sido um bocado renitentes ao desmembramento da Jugoslávia, deixaram de o ser a partir daí. É quando eles lixam o acordo de Lisboa, o Plano Cutileiro, e vão dizer ao Izetbegovic [Alija, presidente da Bósnia-Herzegovina] que tirasse a sua assinatura. 20 anos depois e 100 mil mortos depois, o território foi dividido quase como estava previsto em Lisboa. E esta gente consegue dormir sem ter a consciência bem queimadinha? (…) É por isso que a Estónia tem tanto medo da Rússia? Claro. Como é óbvio: se eles tratassem bem a população russófila não teriam medo. E nós, na União Europeia, aceitamos isso. Aceitámos como membro, sem discutir e pedir condições mais exigentes, a Croácia, que fez a maior limpeza étnica da guerra jugoslava. Foram 250 mil sérvios expulsos da Croácia. Viviam lá 450 mil, agora são cerca de 150 mil. Os outros são sempre maus, criminosos. Nós, não. Aqui em Portugal alguém se importou durante oito anos,com aquilo que se passava no Donbass? (…) Agora, este pensamento americano foi um bocado a curto prazo. Queriam vender mais armas; precisavam de vender mais gás líquido e não tinham maneira do o fazer enquanto a Rússia tivesse o mercado alemão nas mãos, agora vendem eles aos alemães. Quem é que perdeu nisto? Perdeu a Rússia. Em termos de prestígio, de armamento, de pessoas. A economia… Nisso tenho algumas dúvidas, porque eles prepararam-se bem. Depois, perdeu a Ucrânia. Não há quem os safe agora [aos ucranianos]. Talvez daqui a uns 20 ou 30 anos e para isso é preciso a Europa abrir os cordões à bolsa. A Europa, está-se a ver. Não há gasolina, não há gás, não há milho, não há rações para gado, não há trigo, não há óleo de girassol. Quem ganhou? Os EUA e a China. Toda a narrativa de independência militar europeia esbate nessa dependência crescente da Europa para com os EUA. Nós somos os criados de quarto dos norte-americanos. Tenho o curso de Ranger feito nos EUA. Não há muitos em Portugal, uma dúzia, talvez. Por muito que goste dos norte-americanos, por muito que os russos tenham sido sempre o meu inimigo. (…) As pessoas estão com medo. Até eu fico com medo quando oiço responsáveis a falar. O ministro Santos Silva virou um falcão. Ouvi Ana Gomes: "se a NATO não serve para ajudar a Ucrânia, então não serve para nada". Para já, a NATO é uma organização defensiva. A Sérvia mostra que não é bem assim. Pois, claro, aí foi ofensiva e de que maneira. O meu colega Agostinho Costa disse "a NATO é os Estados Unidos e o resto é paisagem", e caíram-lhe em cima. É paisagem, porra! Quem é que fez os bombardeamentos [na Sérvia?]? Os norte-americanos e os ingleses. O que é que faziam os nossos caças? Escolta aos que iam bombardear. Não andámos a bombardear. Agora toda a gente percebe de tropa, o que é fantástico. Eu que estudei isto toda a vida às vezes continuo sem perceber. Há pessoas que leram agora duas coisas na Wikipédia e pronto, já percebem tudo sobre guerra e tropas. Qualquer indivíduo que tenha chegado a major-general teve que estudar estratégia, fez o curso de estado-maior, em que novamente a estratégia e a geoestratégia são uma parte importantíssima. Depois no curso para general voltou outra vez a levar com aquilo em cima. E novamente teve de apresentar trabalhos, análises nesse âmbito. Anos, anos e anos a pensar. E agora um qualquer doutor que leu duas tretas já sabe de geoestratégia e percebe tudo. Eu não percebi que Putin ia atacar. Três dias antes perguntaram-me na SIC e disse "acho que não". Porque sempre me convenci que o Zelensky aceitaria as condições impostas, que me pareciam lógicas. As repúblicas separatistas já estavam separadas. A Crimeia já estava anexada. Eram situações de facto que ele nunca iria conseguiria reverter. Para isso tinha de ter poderio militar, que não tinha. Mas esse era o medo de Putin quando o Zelensky começou, em novembro, a concentrar 40 a 100 mil homens na linha de Donbass. Jogou à roleta russa com um russo. Não se faz isso. E depois a entrada para a NATO. Aí é que a NATO procedeu mal ao dizer que a Ucrânia teria todo o direito de entrar para NATO. Depois já diziam "não, ele nem podia, afinal, entrar para NATO". Isso é tudo treta. Não é assim que as coisas se passam. O que é que custava ao indivíduo dizer "sim senhor, não quero entrar para a NATO" e declarava a neutralidade como a Finlândia. Os seus críticos dizem que todas as nações têm o direito à sua autodeterminação. Digam isso a Cuba e ao México. Vão lá e digam-lhes: "vocês têm o direito de serem os aliados de quem quiserem". Treta, não têm. Porque é que somos hipócritas? Escrevi um livro sobre o Kosovo. O meu título inicial era "A hipocrisia de uma independência inédito", porque foi hipócrita. Agora achamos mal a independência das repúblicas separatistas. Essas estão mal, a do Kosovo está bem. Expliquem-me lá. A Transnístria? "Não pode ser." O Nagorno-Karabakh?" Nem pensem nisso." A Ossétia e a Abecásia? "Ah, isso são pró-Russos, não podem ser independentes". O Kosovo? "Pode, até vai entrar para a NATO e tudo."  Um bocadinho menos de hipocrisia. Farto-me de dizer isto: eu pensava que era do lados dos "bons". Que só fazíamos coisas boas. E o quando é que percebeu que não era? Já há algum tempo. Não foi preciso muito. Foi quando começaram as missões internacionais, quando comecei a ver que as coisas não são a preto e branco, quando começaram estas missões de paz e percebi que não era bem assim. Não era assim tão bonito. Sobretudo ao ver que nós é que fazíamos as maldades. (…) Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora. É preciso um gajo ter cuidado com o que diz. Se eu disser que nos corredores humanitários quem tem interesse em que os civis saiam são os russos e que os ucranianos têm interesse que os civis fiquem, para se protegerem, dizem logo "este gajo é putinista". Se digo que o prédio foi deitado abaixo porque eles tinham, seguramente, gajos com o javelins ou stingers no topo do prédio, que é o normal, e os russos passam lá com um helicóptero e vêem lá o stinger, mandam para lá uma bojarda, como é óbvio. Onde é que estavam os lança-foguetes múltiplos quando caíram aquelas [bombas] em Kharkiv, no meio da cidade? Os lança-foguetes estão nas traseiras de carrinhas. São lançados e depois vão-se embora. E quando chega o troco já lá não estão. Mas o sítio onde eles estavam fica reduzido a entulho. É assim que se criam incidentes. Era isto que se fazia constantemente na guerra da Jugoslávia. Morteiros ao pé de hospitais, de um lado e de outro. Os sérvios faziam isso e os croatas faziam isso. Os morteiros mais pesados estavam ao lado de um hospital.»

Ricardo Cabral Fernandes, Setenta e Quatro.

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