Bico calado
- «(…) O humanismo ocidental é seletivo: ignorou os 12 mil
haitianos enviados pelos Estados Unidos para a prisão de Guantánamo e a invasão
do país em 1994; ignorou a instigação e a participação da NATO nas guerras da
Jugoslávia e os seus 150 mil mortos; ignorou as duas Guerras do Golfo, a
mentira que desculpou uma delas e os 100 mil mortos diretos que os combates
provocaram; ignorou mais 100 mil mortos que o Iraque "protegido" pela
coligação internacional lá instalada provocou; ignorou a presença
norte-americana durante 20 anos no Afeganistão e os 65 mil mortes que ali
ocorreram; ignorou os envolvimentos, desde 2001, diretos ou indiretos, de
forças ocidentais na Síria (estimam-se 400 mil mortes); ignora o que se passa
na Somália e no Iémen; ignora a ocupação da Palestina por Israel e, nos últimos
anos, os 21 500 mortos desse conflito. O humanismo ocidental tem coração mole para um lado e
coração de pedra para o outro. As guerras espalhadas pelo mundo com
envolvimento do Ocidente somam, em 30 anos, quase um milhão de mortos, a grande
maioria civis, mas o bom cidadão ocidental não chora por eles. O humanismo ocidental é dúbio. Condena vigorosamente a
prisão do opositor de Putin, Alexei Navalny, mas deixa apodrecer na cadeia o
denunciador das brutalidades das tropas americanas e da NATO, Julian Assange. O humanismo ocidental é criterioso. Manifesta-se quando
críticos de Putin são envenenados no estrangeiro mas arquiva no esquecimento o
cientista inglês David Kelly que, misteriosamente, suicidou-se dois dias depois
de depor no parlamento sobre a falsificação de provas da existência de armas de
destruição maciça no Iraque. E o jornalista que deu essa notícia em primeira
mão foi despedido. O humanismo ocidental é esclarecido. Classifica a
imprensa estatal russa de instrumento de propaganda "tóxica" mas
glorifica o World Service da BBC, pago pelo Ministério dos Estrangeiros
britânico e onde muitos jornalistas portugueses que lá trabalharam foram
obrigados, durante décadas, a pedir autorização superior para fazer qualquer
tipo de entrevista... e essa autorização só vinha depois de lida a lista de
perguntinhas a fazer! O humanismo ocidental é dinâmico. Indigna-se aos gritos
com a censura de Putin ao jornalismo independente, mas refila baixinho quando
proíbem a Russia Today de emitir no Ocidente ou quando os potentados das redes
sociais, que ninguém controla, filtram o que o povo pode ou não pode dizer. O humanismo ocidental enerva-se com a brutalidade policial contra manifestações
políticas em países longínquos e contra as prisões indiscriminadas de gente
comum, mas cala-se, conformado, quando isso é feito nos seus países contra os
que recusam vacinar-se, contra os que exigem direitos para os negros, contra os
sindicalistas, contra os imigrantes pobres e de pele escura. O humanismo
ocidental já nem se lembra de George Floyd. O humanismo ocidental é espertalhão. Explica todas as
intervenções militares do Ocidente no resto do mundo com a necessidade de
defender a democracia, o contexto histórico e sociológico das regiões, as
tensões estruturais das economias locais, as rivalidades das religiões, as
divisões tribais, as fronteiras mal definidas, a selvajaria dos ditadores
locais. Mas para comentar a guerra ucraniana só aceita começar a análise por um
facto: Putin invadiu no dia 24 de fevereiro o país de Zelensky. Falar do que
está para trás, dos 13 mil mortos do Donbass, do crescimento da NATO para
leste, por exemplo, é trair a Ucrânia, é trair o Ocidente, é trair a humanidade
- e se o fazes, és mesmo má pessoa! O humanismo ocidental é ingrato. Garante que a Rússia não
é do Ocidente, exige que ignoremos 2 mil anos de cristandade partilhada, as
leituras de Dostoiévski, Tolstoi, Tchekhov, Gorki; as músicas de Tchaikovsky,
Stravinsky, Shostakovich, Prokofiev; os filmes de Eisenstein, Tarkovsky; os
pensamentos de Bakunine, Lenine ou Trotsky. O humanismo ocidental acredita que
nada deve do que é à Rússia. Eu adoro os valores teóricos do humanismo ocidental, são um exemplo para o
mundo, a sério, mas não aguento a constante prática violenta do humanismo
ocidental, uma vergonha neste mundo, a sério.» Pedro Tadeu, O humanismo
ocidental é decente? - DN 9mar2022.
- A Disclose investigou as condições de trabalho no Lidl, uma multinacional com
uma mão-de-obra maioritariamente feminina - cerca de 70% da massa salarial - e
um sucesso financeiro insolente - 14 mil milhões de euros de volume de negócios
em França em 2021. Longe da comunicação oficial, a investigação mostra que o
sofrimento no trabalho se instalou a todos os níveis das 1500 lojas da empresa
em França.
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