Bico calado
- «Não estou de acordo em que se fuzile ninguém sem
julgamento, coisa que fez o Marcelino da Mata frequentemente. Não estou de
acordo com o que se terá passado no Ralis, mas o que estamos a discutir é o
Marcelino da Mata comandante dos Comandos durante a Guerra Colonial na Guiné. É
possível considerar herói um homem que está carregado de crimes?» Fernando
Rosas, TVI.
- «Como jurista a cumprir a minha comissão no Serviço de
Justiça, no Quartel General em Bissau, fui muitas vezes encarregado de informar
processos-crimes e disciplinares, motivados pelo comportamento ilícito, e por
vezes atrozmente delitual, deste militar (…) a despeito das reiteradas
propostas da sua responsabilização pelas infrações em que incorria, muitas
delas de extrema gravidade, os autos, que não poderiam deixar de lhe ser
levantados, terminavam infalivelmente no arquivamento sumário, por ordem
superior sem rosto». Mário Cláudio, via Esquerda.
- «(…) um povo sem memória é um povo sem futuro, desarmado
política e ideologicamente e posto à mercê de toda a sorte de manipuladores e
oportunistas. O caminho para estes estará por completo franqueado se se
conseguir fazer esquecer (…) que existiu uma guerra colonial, errada e injusta,
para onde foram mandados, como carne para canhão, milhares e milhares de filhos
do povo, dos quais muitos não regressaram vivos e outros voltaram profundamente
estropiados quer física, quer psicologicamente (em particular pelo stress
pós-traumático (…) Ou ainda que, nessa mesma guerra colonial, de par com esses
militares, vítimas do regime, também se verificaram – umas vezes de mãos dadas
com a PIDE e outras com esbirros camuflados, orgulhosos com as barbaridades que
praticaram – horrorosos crimes de guerra, com assassinatos em massa de civis,
incluindo crianças e mulheres, violadas e mortas à pancada, a tiro ou pelo
fogo. Ora, foi precisamente isto que sucedeu, entre outros, com
os massacres de Batepá (em 3/2/1953, em São
Tomé), Pidjiguiti (em 3/8/1959, na Guiné-Bissau), Mueda (em
16/6/1960, em Moçambique), Baixa do Cassange (em Fevereiro de 1961,
em Angola), e como os de Mukumbura, Chaworba, Juawu e Wiriyamu (entre
1971 e 16 de Dezembro de 1972, todos no distrito de Tete, em Moçambique (…) Vem
tudo isto a propósito do facto de que, nos últimos dias, imprensa e redes
sociais se encheram de “notícias” e sobretudo de comentários relativos ao
falecimento e ao funeral do tenente-coronel Marcelino da Mata (…) e como se de
um verdadeiro herói nacional se tratasse, fizeram-se representar os partidos
políticos Chega, Ergue-te! e PDR e compareceram, para
além do Chefe do Estado-Maior do Exército, General Nunes da Fonseca, e do Chefe
do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Almirante Silva Ribeiro, o próprio
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que, todavia, já não esteve
presente nos funerais de militares que fizeram o 25 de Abril e que faleceram
recentemente como Teófilo Bento,
Luís Macedo, ou Abrantes Serra (…) Mas quem foi, afinal, Marcelino da Mata?
(…) Entre 1966 e 1973, Marcelino da Mata foi inúmeras vezes louvado e
condecorado pelo regime colonial-fascista, recebendo dezenas de louvores, duas
medalhas de 1ª classe, duas de 2.ª classe e uma medalha de 3ª classe da Cruz de
Guerra, tendo, em 02/07/69, sido feito Cavaleiro da Antiga e Muito Nobre Ordem
Militar da Torre e Espada, de Valor, Lealdade e Mérito (a mais elevada ordem
honorífica de Portugal). (…) não foi enquanto militar incorporado à força num
exército colonial para travar uma guerra injusta que Marcelino da Mata ficou
conhecido e se tornou merecedor dos louvores que recebeu, mas sim enquanto
colonizado que escolheu ficar do lado do colonizador e, muito mais ainda,
enquanto autor de barbaridades indizíveis contra não só o “inimigo” (os guerrilheiros
do PAIGC) mas também contra populações civis completamente indefesas e com cuja
tortura e massacres se satisfez, gabando-se e orgulhando-se de tais “proezas”
até ao fim dos seus dias. Não foi, aliás, por acaso que ficou conhecido por
“Rambo da Guiné”, comparado com o qual, conforme o próprio se gabava, o
original seria uma criança… No livro O interior da revolução, de Vasco Lourenço,
este relata explicitamente como Marcelino da Mata contou em Bissau a vários
outros militares, uma das suas proezas: “(…) Entrámos na tabanca, deitámos granadas
incendiárias para as palhotas, as pessoas fugiram para o centro da tabanca,
matámos todos, homens, mulheres e crianças”. Relato similar foi feito pelo
próprio, em 1971, na sequência da Operação Mar Verde, no Xime (cais do rio
Geba), com exibição de um boião de vidro com despojos humanos conservados em
álcool, segundo referência de Clementino Castro, da Companhia de Artilharia
(CART) 3715. E segundo os relatos dos que por lá passaram, quer na BA12, quer, antes
disso, nos chamados “Roncos de Farim”, sempre foram amplamente conhecidas as
sanguinárias façanhas de Marcelino da Mata, ou seja, dos verdadeiros crimes de
guerra por ele cometidos, e o modo como deles se gabava e ufanava, a ponto de
proclamar, e por diversas vezes, que quando capturava “turras” (guerrilheiros
ou suspeitos de com estes colaborarem), não os entregava à PIDE pois preferia
torturá-los das formas mais bárbaras e ficar a vê-los morrer no maior dos
sofrimentos. Ora, nada disto pode ser confundido com “coragem” ou “destemor” ou
“explicado” pela guerra. E é por isso que procurar fazer de um indivíduo destes
um herói, a quem todas as homenagens seriam devidas, constitui uma absoluta e
inaceitável ofensa, desde logo às suas inúmeras vítimas, mas também a todos os
que, incorporados à força e obrigados a combater, não cometeram barbaridades
como aquelas. E constitui igualmente uma grave e inaceitável agressão à memória
colectiva do Povo Português e dos Povos das colónias, bem como à sua
resistência contra o fascismo e contra a guerra colonial. E agressões destas,
como outras que já ocorreram no passado,
não podem passar em claro. Por isso, para que este pretenso “herói”
Marcelino da Mata e o que ele representou e representa não seja esquecido, é
preciso gritar de novo e bem alto: Não apaguem a memória!» António Garcia
Pereira, Que não se apague a memória – Marcelino da Mata - Notícias Online.
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