Foto de Jonathan Brady/PA. Imagem captada aqui.
«(…) O que se passa é que o Presidente está a falar demais. A falar demais, a falar demais em todos os sentidos, a falar do que não deve, e a falar onde não deve. E o efeito é muito pernicioso, em primeiro lugar, para si, visto que banaliza a sua palavra, e, sendo hoje tacticamente bom para o Governo, a prazo será mau e, em segundo lugar, é muitas vezes um abuso dos seus próprios poderes no limite da inconstitucionalidade ainda verbal e virtual, mas, mesmo assim, tratando-se da palavra do Presidente, ela terá consequências disfuncionais. Somamos a isso um estilo demasiado exposto e exibicionista, embora reconheça que aqui as sensibilidades e o bom gosto são muito subjectivos. Mas o Presidente vai precisar de alguma gravitas, porque vai ter de tomar decisões difíceis, visto que até agora tudo é um mero aperitivo, um amuse-gueule. Ora nessa altura as selfies não lhe vão servir de nada, e se servirem será pior ainda, porque a popularidade pode tornar-se um populismo. O Presidente fez já sobre todas as matérias da agenda trivial, gastronómica, festiva, cultural, social, económica, política centenas de declarações, muitas centenas de declarações opinativas, do futebol à Caixa Geral de Depósitos, faz declarações formais sempre que sai uma estatística, interpretando-a, produz um metadiscurso de comentário sobre tudo e mais alguma coisa. (…) Ele pode dizer que se pronuncia sobre todas as matérias que provocam “alarme público”, mas o Presidente não é o Correio da Manhã e não se perceberá então que não comente casos como a operação Marquês. E alguém me explica por que razão, tendo o Presidente encontros regulares com o primeiro-ministro, antes dessas reuniões se pronuncia em público sobre matérias que deviam permanecer na reserva do Estado? Até agora corre tudo bem porque Costa é para o lado em que dorme melhor, suporta bem o epíteto do “optimista irritante”, coloca-o a seguir debaixo do seu guarda-chuva e uma imagem vale mais do que mil palavras. Mas não vai ser assim um dia em que Marcelo diga que vai estar vigilante no Inverno para saber o que é que o Governo vai fazer sobre os incêndios — uma matéria de exclusiva responsabilidade governamental terá como resposta que não é preciso o senhor Presidente estar preocupado, porque o Governo sabe muito bem o que deve e o que pode fazer. No mês de Agosto, o apogeu da silly season, o Presidente ocupou todo o espaço mediático, das televisões às revistas cor-de-rosa, pronunciando-se muitas vezes de forma pouco responsável sobre matérias como a Caixa Geral de Depósitos, mas também teve silêncios, que, tratando-se de Marcelo Rebelo de Sousa, são silêncios que gritam altíssimo: não se pronunciou, por exemplo, sobre comportamentos do fisco que violam a Constituição portuguesa, como denunciou a Comissão Nacional de Protecção de Dados, que, nesta matéria, não é tida nem achada, nem tem poderes para “proteger” nada, matéria que é do foro presidencial ,como garante da Constituição. Não se pronunciou sobre os abusos vexatórios que decisões do BCE comportaram e que nunca foram aplicadas a nenhum outro país e que mostram como as instituições europeias, quando se lhes deixa fazer o que querem, abusam. O abuso diz respeito à soberania nacional, matéria que está no âmago da função presidencial.
Mas eu daria de barato os silêncios, se não fossem no meio de uma logomaquia gigantesca, que pode entreter os jornalistas, muitos dos quais formados na escola dos “cenários” que Marcelo criou no Expresso e no seu comentário televisivo — por isso estão bem uns para os outros —, se não se estivesse a criar uma disfunção que cresce todos os dias, e cujos efeitos de perturbação se vão disseminar pelo sistema político. (…) Este é o Presidente que temos, mas não é a Presidência de que precisamos. E o que mais que tudo é grave é que eu tenho a certeza, mas mesmo a certeza, de que Marcelo Rebelo de Sousa concorda com tudo o que escrevi, sabe que é assim, sabe quais são as consequências, e saberá melhor do que ninguém que “if you live by the word you will die by the word”. E que, um dia, tudo o que sobe desce, ou melhor, cai.»
José Pacheco Pereira in A (dis)função presidencial – Público 3set2016.
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