segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A Arte de Furtar (21)

“Outro soldado português da Índia na mesma Corte gastou anos alegando inumeráveis serviços para o despacharem com um pedaço de pão honrado para a velhice. Vendo que se lhe goravam suas pretenções pelas vias ordinárias, tratou de se ajudar de unhas apressadas (...) E achou-as com pouco dispêndio do feu cabedal, que era já bem limitado, no pincel do melhor pintor de Madrid. Mandou-se retratar muito ao vivo quase morto, com quantas feridas tinha recebido no serviço de el-rei, que passavam de vinte, todas penetrantes e em todas elas as armas ofensivas com que os inimigos o feriram, que por serem diversas, faziam com o sangue um espetácculo horrendo no retrato. (...) Com esta pintura e seus papéis se apresentou diante de el-rei Filipe em audiência pública, e desenrolando-a lhe disse em alta voz: Senhor, eu sou o que mostra este retrato. Nestes papéis autênticos trago provas de como recebi todas estas feridas no serviço da Coroa de Portugal na Índia e a melhor prova de tudo trago escrita em meu corpo, que Vossa Magestade pode mandar ver e achará que em tudo falo verdade. Seja Vossa Magestade servido de me mandar despachar, como pedem estes serviços e merecimentos. Enterneceu-se o rei, pasmaram os circunstantes e saiu logo dali despachado o pretendente com uma comenda grande, a que pôs embargos a inveja e lha fez comutar em outra pequena porque não era fidalgo ou porque não encheu as unhas apressadas, que tudo alcançam ou tudo estorvam.”

A Arte de Furtar, Tomé Pinheiro Da Veiga/Padre António Vieira, p373-375  – Oficina de Martinho Schagen, Amsterdão 1744

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